quarta-feira, 16 de maio de 2007

Eu sei mas não devia

Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.
A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor.
E porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora.
E porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas.
E porque não abre as cortinas logo se acostumaa acender cedo a luz.
E a medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.
A gente se acostuma a acordar de manhã
sobressaltado porque está na hora.
A tomar o café correndo porque está atrasado.
A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem.
A comer sanduiche porque não dá para almoçar.
A sair do trabalho porque já é noite.
A cochilar no ônibus porque está cansado.
A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e
ouvir no telefone: hoje não posso ir.
A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso
de volta.
A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.

A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita.
E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar.
E a pagar mais do que as coisas valem.
E a saber que cada vez pagará mais.
E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma à poluição.
Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro.
À luz artificial de ligeiro tremor.
Ao choque que os olhos levam na luz natural.
Às bactérias de água potável.
Agente se acostuma a coisas demais, para não sofrer.

Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá.

Se a praia está contaminada a gente molha só os pés e sua no resto do corpo.
Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço.
Se o trabalho está duro a gente se consola pensando no fim de semana.
E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele.
Se acostuma para evitar feridas, sangramentos,para poupar o peito.

A gente se acostuma para poupar a vida.
Que aos poucos se gasta, e que gasta de tanto se acostumar, e se perde de si mesma.


Clarice Lispector























Como diria um amigo meu... "Isso foi um soco na boca do estômago!" (que violência...)
Dica de leitura de muitos amigos(as)... a todos!




Até

4 comentários:

Raffael do Prado disse...

É um belo soco no estômago mesmo. Nos acostumamos a levar a vida "de leve", deixando ela mais pesada. Cortamos vários caminhos, encurtando não o nosso trabalho, mas a nossa vida. Achamos graça da máxima "pra tudo se tem um jeitinho", por esse caminho é mais fácil....não nos damos o trabalho de pensar, de ouvir, de nos ouvir e fazer pensar.
E a poeta nem chegou a conhecer a internet.......vou dar uma forcinha..."A gente se acostuma à internet. Criamos amigos virtuais, mantemos relações frias, e as sensações são enviadas decodificadas em malas-direta.

Anônimo disse...

Uma ótima reflexão.
Já tinha recebido esse texto uma vez via e-mail.
beijocas

Unknown disse...

de onde nos conhecemos Priscilla?
vc comentou que eu não ia lembrar de você e de fato isso aconteceu... me desculpe.
Bjos Rafa

rafaelmpb@gmail.com

Anônimo disse...

Oi, Priscilla, legal teu blog, gostei!
Continua assim...
Abraço!